sábado, 18 de fevereiro de 2023

Resenha de Gray - álbum de Unguilty

 

Enquanto o verão tenta soprar sua brisa ardente através do clima frio e chuvoso do leste do Paraná, eu busco por melodias que possam trazer um alívio gélido, ainda assim quente o suficiente para me lembrar que a existência humana consiste de algum equilíbrio entre os opostos. Sim, estou falando de Unguilty, banda de Depressive Doom Metal oriunda da capital mais fria do país: Curitiba. Tão fria quanto a cidade, são as melodias executadas por F. R. - Felipe Ravanello -, o único integrante da banda. Mas, engana-se quem pensa que o fato de ser um só membro faz desta banda algo limitado. Ela expande-se para além dos horizontes. Com seu talento nato, Felipe põe na balança cadenciados riffs de guitarras, linhas melancólicas de piano, baixo nítido e envolvente do início ao fim e bateria marcando uniformemente cada passo melódico das faixas. Seus vocais graves fecham a obra, criando uma atmosfera soturna, densa e imersiva. Ainda, há passagens com vocais limpos, onde cada palavra proferida ressoa majestosamente, completando, assim, as imagens lamentosas criadas em Gray, o 3º álbum de Unguilty. A parte lírica de Gray ficou por conta de Melissa Winter, que belissimamente expressa uma gama de emoções a cada linha. Uma poesia desesperada, agonizante, em desabafos de alguém que busca ferozmente pela luz. De alguém que foi tomado pela escuridão, cegando tudo à sua frente. A produção, gravação e lançamento do álbum fica à cargo do selo Eternal Awake Records. Embora não seja um álbum conceitual - de um modo e outro as faixas se relacionam umas com as outras -, seria um sacrilégio não fazer uma parada por cada uma delas. Então, embarque comigo para essa viagem pelas trilhas da desolação.

 

1. Asleep With The Midnight Sun - Com um suave riff de guitarra entrelaçado com sons de água corrente, que cativa de imediato, a faixa vai crescendo de forma precisa a cada segundo. Acordes suaves, mas, já expressando uma melancolia que prepara para o peso que chega em seguida. Os riffs distorcidos são muito bem encaixados, contrastando com os vocais vigorosos e que exalam o distanciamento da alegria. A letra remete a perdas, abandono, distanciamento. Quando tudo aquilo que trazia uma chama de vida se apaga, o que podemos fazer? Apenas se lembrar. Mas, as boas lembranças podem ser mais dolorosas que apaziguadoras. E a dor segue corroendo internamente. F. R. consegue trazer as emoções à tona de uma forma muito palpável, ainda, mantendo esmera sintonia com cada instrumento que executa. Assim como as demais faixas, ela ultrapassa os 5 minutos, mas é dosada para que não se torne monótona, pelo contrário, há partes mais rápidas que se encontram com as mais calmas e melancólicas, alicerçadas com uma linha de piano que agrega muito mais tristura ao panorama já densamente triste.

2. The Abyss And The Pendulum - A lentidão sonora, característica da banda, traz uma imersão muito maior ao ser evocada logo nos primeiros instantes desta faixa. O sintetizador cria uma imagem lutuosa impossível de se desvencilhar. A bateria acelera o ritmo, mas ainda é lenta o suficiente para que o ar fúnebre permaneça. E, é justamente o que a parte lírica expõe. Quando você não consegue enxergar nada mais a sua frente, quando a escuridão põe uma venda diante de ti, então, para onde ir? A única alternativa, já plantada e regada no decorrer do tempo, se torna um arvoredo em sua mente. Perante o abismo, o corpo, deliberadamente, cai. Não é preciso, sequer, dar o impulso. O cansaço, penetrando dia após dia até os ossos, é suficiente para que o corpo apenas busque seu fim por si só. A mente cessa. Não há porquê resistir. A resignação se assenta para que não haja mais luta alguma, afinal, não há mais físico e mental aptos para qualquer luta que seja. O não existir paira pela eternidade.

3. Coexistence - A canção que traz uma calma, após as duas primeiras mais densas, não deixa de ser tristemente bela e profunda. Com vocais limpos, F. R. recita a dor da partida. Nesse ponto, não é mais a dor de quem partiu, mas sim de quem ficou. O pesar que parece nunca vir a se tornar saudade. Perder alguém é uma dor infindável, que, talvez, seja transformada - externamente - em saudade, em algum momento da vida, mas, a dor em si, esta ainda tem seu assento dentro de cada um de nós. O instrumental é imensamente marcante, com riffs de guitarra que emergem conduzindo a música e levando-a cada vez mais ao lago emocional onde a tristeza preenche incansavelmente. Mesmo nas partes mais rápidas, os riffs seguem acentuados. A saída da velocidade para a sonoridade mais lenta se faz com primor, não há quebra sonora, o que torna a faixa integral com todas suas partes singulares.

4. Gray - O piano, que é o instrumental característico em sonoridades do Depressive Doom, se faz presente aqui logo no início. Com uma bateria cadenciada, ele ressoa lastimavelmente enquanto os vocais limpos são proferidos. As linhas de guitarra, como de praxe, são a guia da desolação. O baixo, aliás, instrumento de maior familiaridade de F. R. (custei a usar esse termo, visto que o músico é multi-instrumentista nato) tem sua marca notavelmente acurada, não só nesta, mas em todas as faixas. A música-título do álbum fala sobre o não-sentir. Quando o indivíduo se encontra morto, em emoções, sentidos e sensações. A paisagem é sempre acinzentada, não há vida, cores, nitidez. As vistas se ofuscam junto à natureza funesta que rodeia a tudo. Estar morto, mas, ainda assim, não estar. A consciência de si, este é o inferno real.

5. Hill House - Seguindo Gray, esta faixa também traz uma suave introdução com piano, acordes limpos de guitarra e vocais imersivos e limpos se abrindo às lembranças, anseios e saudade. A saudade, que outrora sobrecarregava como luto, aqui se faz corpórea. O desejo de poder aliviar as dores de quem estimamos, de reviver o que tivemos, os momentos, os afetos compartilhados, os silêncios. A música segue mais marcante, em sua lentidão expressiva, penetrante, com a bateria agregando o peso exato para chegar ao fundo das emoções mais secretas de nosso âmago. A ambientação, inclusive, é imprescindível para isto. O ar enevoado, abraçando em todas as direções, parece nos levar a um vendaval. Não um vendaval hostil, mas sim aquele preciso, na exata turbulência para que cada partícula do som se mescle ao nosso próprio corpo e mente, talvez, no alto da colina de nossos sonhos soterrados.

6. Rest - Após dores, angústias e pesares, o descanso chega. Esta faixa é toda instrumental, mas, o fato de não ter canto não torna ela inexpressiva. Ela fala, ela ressoa liricamente, ela transmite muitas mensagens, sem nada dizer. Guitarras, baixo, bateria e piano fazem Rest bradar pela vontade de repousar, respirar, encontrar um resquício de serenidade. Do início ao fim, ela consegue colocar isto de forma tangível.

7. I - The Garden Of My Suicide - Embora, à princípio, não seja um álbum conceitual, aqui inicia-se o primeiro capítulo de 3 canções que, por que não dizer, resultam em uma epopeia. Desde a primeira faixa até aqui, as emoções mais obscuras foram trazidas à tona. Não é diferente agora, no entanto, elas estão ainda mais afundadas no desamparo de uma alma que chegou ao seu final, o final por suas próprias mãos. Além da visão enegrecida no nada, as dúvidas de o porquê daquilo, pairam, remoem, disparam sem cessar. A tormenta aumenta, toma proporções inconcebíveis. F. R., com sua voz vigorosa, expressa esse trajeto em meio à desolação de forma esplêndida. As passagens mais calmas não deixam de ter um peso, uma densidade, uma carga suficiente para que a desolação deixe de aflorar. Do mesmo modo que as anteriores, ela tem uma dosagem exata para que se desenvolva uniformemente sem que se torne uma viagem sonora entediante. Suas variações são, aliás, o que mantém a história, ali contada, tão convidativa.

8. II - After My Suicide (The Lost Land) - Juntamente com a faixa anterior, esta ultrapassa os 11 minutos de duração. É a segunda parte da epopeia, onde o herói chega ao seu regozijo. Após tantas perdas e angústias, parece haver um contentamento, uma sensação de tranquilidade. Nada mais dói. Nada mais é laborioso. Há luz, há cores, há sons agradáveis vindo de todas as direções. Há, enfim, alívio. O piano, marcante, dá continuidade na caminhada rumo à terra da pós-existência. Os riffs de guitarra trafegam com intensidade pelas vielas do, ainda, desconhecido. A bateria e o baixo manifestam entrosamento ideal com o que a canção transmite. Aos sete minutos e meio da faixa, a suavidade se assenta belissimamente, refletindo a serenidade alcançada por quem passou a vida toda almejando nada mais que a paz interior. A guitarra dá a melancolia necessária para gerar uma gama de sensações. O piano parece falar com alegria, anunciando o remanso, enfim, encontrado.

9. III - New Meaning - E, em sua quietude, o despertar. Quando se chega ao fim de tudo, há - independentemente das crenças e fés - um renascer. E, aquele que sofreu severamente em vida, pôde, finalmente, olhar para si mesmo. Essa percepção profunda o fez compreender que a morte nada mais é que o cessar de seu eu. O eu imerso em angústia, desespero e dor. Ao matar a si, matou tudo que o atormentava. Agora, sob seu olhar límpido, consegue enxergar o que existe, de verdade, por debaixo de toda dor e sofrimento. Um novo eu, o autêntico, o único, que foi massacrado, soterrado e limitado pela agonia de existir, meramente existir, ao invés de viver, de fato. Não mais será assim, porque jaz aquele e renasce este, em um novo significado.

Assim como em seus álbuns anteriores, Unguilty ingressa Gray em temas existenciais, profundos, que assombram aqueles que tiveram seus olhos marejados pela escuridão. No entanto, ele é um álbum com passagem de ida, mas, também, de uma volta. Não ao momento em que se estava, mas a um novo momento. De forma incrível, Gray traz a dor e também o alívio. A fadiga e o descanso. O nada e o tudo. E, principalmente, o fim e o início, exatamente nesta ordem.