Enquanto o verão tenta soprar sua brisa ardente através do
clima frio e chuvoso do leste do Paraná, eu busco por melodias que possam
trazer um alívio gélido, ainda assim quente o suficiente para me lembrar que a
existência humana consiste de algum equilíbrio entre os opostos. Sim, estou
falando de Unguilty, banda de Depressive Doom Metal oriunda da capital mais
fria do país: Curitiba. Tão fria quanto a cidade, são as melodias executadas
por F. R. - Felipe Ravanello -, o único integrante da banda. Mas, engana-se
quem pensa que o fato de ser um só membro faz desta banda algo limitado. Ela expande-se
para além dos horizontes. Com seu talento nato, Felipe põe na balança
cadenciados riffs de guitarras, linhas melancólicas de piano, baixo nítido e
envolvente do início ao fim e bateria marcando uniformemente cada passo
melódico das faixas. Seus vocais graves fecham a obra, criando uma atmosfera
soturna, densa e imersiva. Ainda, há passagens com vocais limpos, onde cada
palavra proferida ressoa majestosamente, completando, assim, as imagens
lamentosas criadas em Gray, o 3º álbum de Unguilty. A parte lírica de Gray
ficou por conta de Melissa Winter, que belissimamente expressa uma gama de
emoções a cada linha. Uma poesia desesperada, agonizante, em desabafos de
alguém que busca ferozmente pela luz. De alguém que foi tomado pela escuridão,
cegando tudo à sua frente. A produção, gravação e lançamento do álbum fica à cargo do selo Eternal Awake Records. Embora não seja um álbum conceitual - de um modo e outro
as faixas se relacionam umas com as outras -, seria um sacrilégio não
fazer uma parada por cada uma delas. Então, embarque comigo para essa viagem
pelas trilhas da desolação.
1. Asleep With The Midnight Sun - Com um suave riff de
guitarra entrelaçado com sons de água corrente, que cativa de imediato, a faixa
vai crescendo de forma precisa a cada segundo. Acordes suaves, mas, já
expressando uma melancolia que prepara para o peso que chega em seguida. Os
riffs distorcidos são muito bem encaixados, contrastando com os vocais
vigorosos e que exalam o distanciamento da alegria. A letra remete a perdas,
abandono, distanciamento. Quando tudo aquilo que trazia uma chama de vida se
apaga, o que podemos fazer? Apenas se lembrar. Mas, as boas lembranças podem
ser mais dolorosas que apaziguadoras. E a dor segue corroendo internamente. F.
R. consegue trazer as emoções à tona de uma forma muito palpável, ainda,
mantendo esmera sintonia com cada instrumento que executa. Assim como as demais
faixas, ela ultrapassa os 5 minutos, mas é dosada para que não se torne
monótona, pelo contrário, há partes mais rápidas que se encontram com as mais
calmas e melancólicas, alicerçadas com uma linha de piano que agrega muito mais
tristura ao panorama já densamente triste.
2. The Abyss And The Pendulum - A lentidão sonora,
característica da banda, traz uma imersão muito maior ao ser evocada logo nos
primeiros instantes desta faixa. O sintetizador cria uma imagem lutuosa impossível
de se desvencilhar. A bateria acelera o ritmo, mas ainda é lenta o suficiente
para que o ar fúnebre permaneça. E, é justamente o que a parte lírica expõe.
Quando você não consegue enxergar nada mais a sua frente, quando a escuridão
põe uma venda diante de ti, então, para onde ir? A única alternativa, já
plantada e regada no decorrer do tempo, se torna um arvoredo em sua mente.
Perante o abismo, o corpo, deliberadamente, cai. Não é preciso, sequer, dar o
impulso. O cansaço, penetrando dia após dia até os ossos, é suficiente para que
o corpo apenas busque seu fim por si só. A mente cessa. Não há porquê resistir.
A resignação se assenta para que não haja mais luta alguma, afinal, não há mais
físico e mental aptos para qualquer luta que seja. O não existir paira pela
eternidade.
3. Coexistence - A canção que traz uma calma, após as duas
primeiras mais densas, não deixa de ser tristemente bela e profunda. Com vocais
limpos, F. R. recita a dor da partida. Nesse ponto, não é mais a dor de quem
partiu, mas sim de quem ficou. O pesar que parece nunca vir a se tornar
saudade. Perder alguém é uma dor infindável, que, talvez, seja transformada -
externamente - em saudade, em algum momento da vida, mas, a dor em si, esta
ainda tem seu assento dentro de cada um de nós. O instrumental é imensamente
marcante, com riffs de guitarra que emergem conduzindo a música e levando-a
cada vez mais ao lago emocional onde a tristeza preenche incansavelmente. Mesmo
nas partes mais rápidas, os riffs seguem acentuados. A saída da velocidade para
a sonoridade mais lenta se faz com primor, não há quebra sonora, o que torna a
faixa integral com todas suas partes singulares.
4. Gray - O piano, que é o instrumental característico em
sonoridades do Depressive Doom, se faz presente aqui logo no início. Com uma
bateria cadenciada, ele ressoa lastimavelmente enquanto os vocais limpos são
proferidos. As linhas de guitarra, como de praxe, são a guia da desolação. O
baixo, aliás, instrumento de maior familiaridade de F. R. (custei a usar esse termo,
visto que o músico é multi-instrumentista nato) tem sua marca notavelmente
acurada, não só nesta, mas em todas as faixas. A música-título do álbum fala
sobre o não-sentir. Quando o indivíduo se encontra morto, em emoções, sentidos e sensações. A paisagem
é sempre acinzentada, não há vida, cores, nitidez. As vistas se ofuscam junto à
natureza funesta que rodeia a tudo. Estar morto, mas, ainda assim, não estar. A
consciência de si, este é o inferno real.
5. Hill House - Seguindo Gray, esta faixa também traz uma
suave introdução com piano, acordes limpos de guitarra e vocais imersivos e
limpos se abrindo às lembranças, anseios e saudade. A saudade, que outrora
sobrecarregava como luto, aqui se faz corpórea. O desejo de poder aliviar as
dores de quem estimamos, de reviver o que tivemos, os momentos, os afetos
compartilhados, os silêncios. A música segue mais marcante, em sua lentidão
expressiva, penetrante, com a bateria agregando o peso exato para chegar ao
fundo das emoções mais secretas de nosso âmago. A ambientação, inclusive, é imprescindível
para isto. O ar enevoado, abraçando em todas as direções, parece nos levar a um
vendaval. Não um vendaval hostil, mas sim aquele preciso, na exata turbulência
para que cada partícula do som se mescle ao nosso próprio corpo e mente, talvez,
no alto da colina de nossos sonhos soterrados.
6. Rest - Após dores, angústias e pesares, o descanso chega.
Esta faixa é toda instrumental, mas, o fato de não ter canto não torna ela
inexpressiva. Ela fala, ela ressoa liricamente, ela transmite muitas mensagens,
sem nada dizer. Guitarras, baixo, bateria e piano fazem Rest bradar pela
vontade de repousar, respirar, encontrar um resquício de serenidade. Do início
ao fim, ela consegue colocar isto de forma tangível.
7. I - The Garden Of My Suicide - Embora, à princípio, não
seja um álbum conceitual, aqui inicia-se o primeiro capítulo de 3 canções que,
por que não dizer, resultam em uma epopeia. Desde a primeira faixa até aqui, as
emoções mais obscuras foram trazidas à tona. Não é diferente agora, no entanto,
elas estão ainda mais afundadas no desamparo de uma alma que chegou ao seu
final, o final por suas próprias mãos. Além da visão enegrecida no nada, as
dúvidas de o porquê daquilo, pairam, remoem, disparam sem cessar. A tormenta
aumenta, toma proporções inconcebíveis. F. R., com sua voz vigorosa, expressa
esse trajeto em meio à desolação de forma esplêndida. As passagens mais calmas
não deixam de ter um peso, uma densidade, uma carga suficiente para que a desolação
deixe de aflorar. Do mesmo modo que as anteriores, ela tem uma dosagem exata
para que se desenvolva uniformemente sem que se torne uma viagem sonora
entediante. Suas variações são, aliás, o que mantém a história, ali contada,
tão convidativa.
8. II - After My Suicide (The Lost Land) - Juntamente com a
faixa anterior, esta ultrapassa os 11 minutos de duração. É a segunda parte da
epopeia, onde o herói chega ao seu regozijo. Após tantas perdas e angústias,
parece haver um contentamento, uma sensação de tranquilidade. Nada mais dói.
Nada mais é laborioso. Há luz, há cores, há sons agradáveis vindo de todas as
direções. Há, enfim, alívio. O piano, marcante, dá continuidade na caminhada
rumo à terra da pós-existência. Os riffs de guitarra trafegam com intensidade
pelas vielas do, ainda, desconhecido. A bateria e o baixo manifestam
entrosamento ideal com o que a canção transmite. Aos sete minutos e meio da faixa,
a suavidade se assenta belissimamente, refletindo a serenidade alcançada por
quem passou a vida toda almejando nada mais que a paz interior. A guitarra dá a
melancolia necessária para gerar uma gama de sensações. O piano parece falar
com alegria, anunciando o remanso, enfim, encontrado.
9. III - New Meaning - E, em sua quietude, o despertar. Quando
se chega ao fim de tudo, há - independentemente das crenças e fés - um
renascer. E, aquele que sofreu severamente em vida, pôde, finalmente, olhar
para si mesmo. Essa percepção profunda o fez compreender que a morte nada mais
é que o cessar de seu eu. O eu imerso em angústia, desespero e dor. Ao matar a
si, matou tudo que o atormentava. Agora, sob seu olhar límpido, consegue
enxergar o que existe, de verdade, por debaixo de toda dor e sofrimento. Um
novo eu, o autêntico, o único, que foi massacrado, soterrado e limitado pela
agonia de existir, meramente existir, ao invés de viver, de fato. Não mais será
assim, porque jaz aquele e renasce este, em um novo significado.
Assim como em seus álbuns anteriores, Unguilty ingressa Gray em temas existenciais, profundos, que assombram aqueles que tiveram seus olhos marejados pela escuridão. No entanto, ele é um álbum com passagem de ida, mas, também, de uma volta. Não ao momento em que se estava, mas a um novo momento. De forma incrível, Gray traz a dor e também o alívio. A fadiga e o descanso. O nada e o tudo. E, principalmente, o fim e o início, exatamente nesta ordem.